A Opinião de Miguel Real
FREDERICO LOURENÇO - O MELHOR ROMANCE
2022-07-29Pode um Desejo Imenso, título genérico da trilogia “Pode um Desejo Imenso”, “O Curso das Estrelas” e “À Beira do Mundo”, (2002, ora reeditado pela Quetzal), de Frederico Lourenço (FL), é o melhor romance português publicado este século, isto é, o romance mais completo englobando tanto o sentido tradicional deste género literário, oitocentista, como o moderno, século XX.
Com efeito, melhor significa aqui mais completo e mais completo é sinónimo de “perfeito”. Pode um Desejo Imenso possui com excelência todas as caraterísticas que habitualmente compõem o sentido clássico de romance: personagens fortes e outras não tanto; descrição verosimilhante, que permite ao leitor identificar tipos, classes e ambientes sociais; narração (original) de paixões e sentimentos, geradores de uma história de amor trágica; narração aventurosa da personagem principal, que lhe transforma a vida biográfica num labirinto de acontecimentos sentimentais dramáticos realistas, não fabulatórios ou fantásticos; exploração de temas humanistas (o Amor, a Morte, relação desejo-frustração; relação pais-filhos; homem-mulher); às quais caraterísticas se acrescentam elementos considerados romanescamente “modernos”: abundante intertextualidade, gerando por vezes um tecido filagranático barroco; relação imbricante entre tempos (Renascentismo; atualidade); libertação da palavra do referente concreto; quebra do império da continuidade linear e da cronologia (2ª Parte é anterior à 1ª); emergência do amor homoerótico – porventura o elemento marcante do romance, inaugurando em Portugal para muitos leitores (o que não significa que seja verdade) o romance homossexual; um estilo que trata o insignificante (a vida comezinha do quotidiano) com o valor semântico do importante; a recuperação do espírito do Humanismo Renascentista através da personagem principal (Nuno Galvão) como pano de fundo das relações individuais e sociais.
O leque de personagens é extensíssimo e abarca múltiplos tipos sociais e personalidades individuais: dos antigos catedráticos eruditos da Faculdades de Letras de Lisboa, “D. Quixote” e “Sancho Pança”, prepotentes e insensíveis à paixão da literatura, e das suas secretárias (Dra. Eulália, tão reprimida e frustrada que enlouquece), aos jovens assistentes (Nuno e Helena), dos idosos de família (mãe de Nuno, Bé, Concha…) aos de meia idade (Sofia, Helena e irmãos e respetivos consortes) e às crianças (filhos de Sofia, os dois filhos de Vicente e Rosália, Mariana e Hugo), bem como aos empregados tradicionais da família Galvão (Salvação e D. Aida), a alunos (Filipe e Patrícia), e ao “Grupo da Lírica” (para além de Nuno, Rosália, Vicente e João Pedro); finalmente essa personagem (um pouco caricata mas de fundo verdadeiro) do doutor Ligurino Aulácio ,de Braga, diretor do “Chispe”. Ricas e privilegiadas (as famílias de Nuno e Helena) convivem com necessitados (financeira e afetivamente, Filipe, Vicente), académicos com “broncos” (empresário, marido de Rosália), a antiga geração convive com a novíssima (crianças) - são de 20 a 30 personagens que, manobradas com mestria como numa grande máquina de peças articuladas e harmonizadas, se encontram (quase todas), na cena final da passagem do ano na casa de Helena na Arrábida, como símile de um retrato atual de Portugal. Uma cena romanescamente inesquecível, que não deixa de ostentar um pico de discórdia (o regresso de Gustavo, o irmão pródigo de Helena).
E a história central, baseada no tema eminentemente clássico, aqui tratado de um modo moderno: o Amor. Nuno Galvão, professor, apaixona-se por um seu aluno, Filipe Vaz, que namora com outra aluna, Patrícia. Nuno, camonista, estabelece uma relação com o presumível amor de Camões pelo jovem D. António Noronha, morto em combate em Ceuta (tese de Nuno, censurada pelo seu superior na Faculdade por inconveniente e criticada, sem negação absoluta, pelo amigo íntimo Christian, professor em Oxford). A descrição do perfil do amado Filipe por Nuno ficará decerto, doravante, como trecho obrigatório de recolha em futuras antologias sobre o amor: “Foi o perfil, claro. Um daqueles perfis clássicos. Sem ângulos feios: independentemente donde se olhava para ele. A perfeição marmórea era total. O Antínoo de Delfos (esse lugar-comum insubstituível); os Dioscuros fundidos num só e reduzidos à sua quinta-essência; o olhar parado das estátuas gregas nos momentos de imobilidade (…); a incapacidade enternecedora dele de compreender citações difíceis em latim; o olhar interrogativo, repentino, cinzento esmaltado de jade, que se cruzava com as contemplações culposas fugazmente arriscadas pelo professor; o modo como os jeans lhe assentavam nas pernas. Filipe Vaz. Nome, como tudo o resto, perfeito.” (p. 13).
Nuno, que já vivera uma paixão por Vicente (recuperada na última parte, agora mais serena), por Christian e já frequentara o Príncipe Real em engates de ocasião, entrega-se avassaladoramente a Filipe, dando-lhe tudo, que, após uma fase de hesitação, lhe corresponde. Filipe sofre de uma leucemia, Nuno dispõe-lhe médicos, dinheiro e casa, cumprindo assim a integralidade do amor
Como Eunice Ribeiro sublinha a propósito da versão reunida dos três romances: “… não pode deixar de causar espanto o grau de consciência construtora e o extremo apuro do jogo literário que aqui se desvelam: a subtileza e o refinamento da urdidura intertextual, a abundância das referências culturais, a meticulosa conceção das estruturas macronarrativas e micronarrativas…” (Escritas metamórficas: sobre a ficção de Frederico Lourenço, 2008, p. 87). Não poderia dizer melhor.
Se nas traduções e obras didáticas, Frederico Lourenço tem vindo a depositar, como autor, o seu espírito, isto é, a sua formação clássica, neste triplo romance, como narrador, depositou as pulsões do seu corpo, isto é, o conjunto atormentado dos desejos do corpo, ou, pelo menos, encarnou-as soberanamente na personagem Nuno Galvão.
Pode um Desejo Imenso,
Quetzal, 505 pp, 16,92 euros.
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