A Opinião de Paula Mota

E choviam Pássaros
2024-04-18Gostava das suas vozes gastas, dos rostos devastados, gostava dos seus gestos lentos, das suas hesitações perante uma palavra que lhes foge, uma recordação que se recusa a aparecer […]. A idade avançada afigurava-se-lhe como o último refúgio da liberdade, onde nos desfazemos do que nos prende e deixamos o espírito libertar-se.
Para quem como eu não aprecia livros sobre velhotes rabugentos e excêntricos, a escolha de “E Choviam Pássaros” seria até um pouco bizarra, mas o título sugestivo, a sobriedade da capa e a primeira página tornaram-no irresistível assim que o vi.
A história é inverosímil, mas, tendo existido testemunhas, não devemos recusar-nos a acreditar nela. Seríamos privados desses outros lugares improváveis que abrigam três seres únicos.
Serve esse preâmbulo apenas para provar a minha isenção em relação a este magnífico livro que se centra numa comunidade geriátrica isolada na floresta canadiana, mas que nada tem a ver com sentimentalismo bacoco. Aqui a pieguice foi substituída pela compaixão, a extravagância pela dureza da vida e a ladainha do velhinho abandonado pelos filhos pela autodeterminação de deixar o mundo para trás e até abandonar este invólucro mortal quando o corpo não aguentar mais.
Explicou que a lata continha um remédio de último recurso. Aqui não há médico nem hospital, disse ele, e há limites para o que uma pessoa pode suportar. […] Ninguém aqui tem vontade de morrer, apressou-se ele a acrescentar, mas também ninguém quer uma vida que já não é a sua. […] A liberdade de viver ou de morrer é o que há de melhor para escolher a vida.
Isolados na floresta vivem três velhos eremitas acossados pela doença, o vício e o trauma, tendo como pano de fundo o devastador incêndio florestal que grassou no Ontário em 1916, que causou 223 mortos.
Eu chegara até ali seguindo a lenda de Boychuck, o rapaz que caminhara sobre os escombros fumegantes, o homem que se refugiara na floresta para fugir dos seus fantasmas, um dos últimos sobreviventes do Grande Incêndio de Matheson, em 1916.
A chegada de uma fotógrafa interessada na tragédia e de uma frágil idosa vem perturbar esta pequena comunidade formada pelos três amigos e os seus cães.
A construção da cabana de Marie-Desneige absorveu-os a ponto de terem esquecido a sua futura ocupante, sentada no seu cepo e passeando por eles um olhar perdido.
- Um gato, eu queria ter um gato na minha casa.
Em "E Choviam Pássaros", a morte é, naturalmente, uma presença constante pela idade avançada das personagens e pelos seus problemas de saúde físicos e mentais, mas aqui ela é quase uma entidade palpável e, no entanto, destemidamente evocada.
E a morte? Bom, a morte ainda espreita. Não nos devemos preocupar com a morte, ela está à espreita em todas as histórias.
Se é possível um livro sobre a velhice e a morte ser luminoso, foi essa a sensação com que fiquei durante toda a leitura de “E Choviam Pássaros”, que por essa difícil tarefa ocupa um lugar especial na lista dos meus livros preferidos.
E Choviam Pássaros, de Jocelyne Saucier, Gradiva, Agosto de 2023, Tradução de Isabel Lopes
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