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A Opinião de Paula Mota


As Primas

2024-05-02

Quando comecei esta obra, pensei que o título do primeiro capítulo, “Infância Deficiente”, era um eufemismo, pelo que me chocou um pouco o palavreado cru.

Não sei se “As Primas” se livra de polémicas relacionadas com o lugar de fala e o capacitismo, mas é a própria Aurora Venturi que diz: “Os meus seres são todos monstruosos. A minha família era muito monstruosa. É o que conheço. E eu não sou muito comum.”

No prólogo (a ser lido no final, obviamente, para não saber demasiado sobre o enredo), Mariana Enriquez, digna sucessora das escritoras argentinas da geração de Aurora Venturini, diz sobre a autora quando ela foi receber o prémio Nueva Novela, que conquistou aos 85 anos: "Apareceu com uma atitude punk, o corpo magro, o rosto insólito, com uma expressão entre a troça e a candura."

Essa irreverência e essa fibra passam para o papel e caracterizam o estilo destravado desta escritora. Na família de Yuna, por motivos genéticos, de consanguinidade, ou outros mais prosaicos...

A nossa linhagem derrenganda (idem [dicionário]) e degenerada pelo mau-olhado ou por uma doença hereditária e que um dos seus clientes a informou de que se chamava sífilis.

...todas as primas padecem de algum tipo de incapacidade física e/ou cognitiva.

As minhas priminhas imbeciloides iam a colégios para deficientes e uma delas tinha seis dedos em cada pé e uma excrescência na mão direita. (...) A segunda priminha, segundo se dizia, era liliputiana, que significa anã.

A irmã Betina é corcunda, vive numa cadeira de rodas e tem a mentalidade de uma criança de quatro anos, enquanto a própria Yuna tem as suas limitações intelectuais que tenta disfarçar, até porque é “bonita como uma menina modelo de Modigliani, Menina de Gravata”.

Nesta família peculiar sucedem-se as mortes, os atentados à moral e aos bons costumes, os actos ilícitos, todos eles contados na primeira pessoa com a ingenuidade e a franqueza que se poderá atribuir a uma pessoa que não apreende o que a rodeia de forma comum. “As Primas” é mais do que o tradicional romance de formação, pois além de amadurecer e aprender a navegar num mundo preconceituoso, Yuna descobre o seu dom para a pintura...

O professor de Belas Artes achou que um dia seria uma artista plástica importante pois como era meio maluquinha desenharia e pintaria como os extravagantes artistas plásticos dos últimos tempos.

... aprimora-o e torna-se uma verdadeira artista que vive do seu trabalho, que chega a partilhar a sua criatividade com alunos, ainda que o discurso verbal tenha sido sempre uma das suas preocupações.

Já disse que dentro da minha psique conhecia detalhes e formas, que era muito diferente da tonta de fora que falava sem ponto nem vírgula porque se punha ponto ou vírgula perdia a palavra falada. Às vezes punha ponto ou vírgula para respirar mas convinha-me comunicar de viva voz rapidamente para que me entendessem e evitar lacunas silenciosas que revelassem a incapacidade de comunicação verbal.

Yuna esforça-se para superar o que considera as suas limitações e por se integrar na sociedade, recorrendo à escrita, que pretende aperfeiçoar através das regras da pontuação e aumentando o seu vocabulário, a fim de esbater aquilo que vê como uma deficiência. Esta obra é, por isso, também um testemunho da sua força de vontade e determinação em seguir o seu caminho longe da família disfuncional e atribulada.

As Primas, Aurora Venturini, Alfaguara, abril de 2023,  Tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas

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