A Opinião de Paula Mota
Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro
2024-05-03“As Mulheres do Meu País” de Maria Lamas é o ponto de partida de “Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro”, é o GPS de Susana Moreira Marques ao percorrer os mesmos caminhos que a obra publicada em fascículos entre 1948 e 1950...
Talvez todas as viagens – no país ou fora do país – sejam feitas para termos a certeza de onde vimos.
...é o texto que compôs depois de ter acompanhada a cineasta Marta Pessoa na realização do documentário “Um Nome Para o Que Sou”, é um livro escrito com a sensibilidade que já lhe reconhecera em “Agora e na Hora da Nossa Morte”, desta vez sobre a condição feminina de hoje em contraste (ou não) com aquela época, a “história passada” recordando a sua avó, a “história futura” pensando nas suas filhas.
Muitas das mulheres com quem Maria Lamas fala não sabem ler. Algumas apenas sabem escrever o nome. Algumas foram à escola mas não chegaram a fazer a quarta classe. (...) Não escrevem cartas de amor. Não escrevem cartas a parentes distantes, a não ser por mão alheia. Não escrevem diários. Não escrevem impressões. Não escrevem histórias. Não escrevem poemas de juventude. Não escrevem memórias. Não escrevem nada para que depois fique.
E em paralelo temos a voz intimista de Susana Moreira Marques.
Embora não possa escrever por ela
Tudo o que escrevo
É para compensar o que a minha avó não escreveu
A avó de Susana Moreira Marques, também ela pouco escolarizada, é um dos eixos desta viagem, ainda que a neta não passe na terra onde ela nasceu, mais uma das mulheres silenciosas e invisíveis, praticamente sem registos fotográficos da sua presença, que como muitas avós de então, e dos dias de hoje, são um complemento ou até mesmo um substituto total das mães na rotina diária das crianças.
Algumas mulheres preferem, ainda agora, não falar. Reconhecem, de entre tantos direitos conquistados, o direito à continuação da invisibilidade. (...) O livro de Maria Lamas não terá chegado à minha avó. Os livros onde pessoas como a minha avó apareciam não chegavam às pessoas como a minha avó.
O que leva a autora a concluir: “Será que é isto que quer dizer que o pessoal é político?”
Eu acredito que sim, no fundo, tudo é político, e isso é flagrante no facto de o livro de Maria Lamas não estar disponível para que eu pudesse conferir as suas palavras e visualizar as inúmeras fotos que tirou a mulheres de todo o país há mais de 70 anos. Teria sido um cotejo sem dúvida enriquecedor, se não existissem menos de seis exemplares na maior rede de bibliotecas do país, a de Lisboa, quase todos eles de acesso reservado ou de somente consulta nas instalações. Porque são edições muito antigas, poder-se-ia pensar. Mas não, já que houve uma reedição em 2002. Onde estão portanto essas raridades? Foram guilhotinadas. Política editorial portanto.
A mesma política editorial e de perseveração de acervos que sempre divulgou e guardou os livros dos contemporâneos de Maria Lamas, mas não o seu. Nem na biblioteca municipal mais modesta faltam decerto os clássicos modernos de Alves Redol, Fernando Namora, Manuel da Fonseca e Soeiro Pereira Gomes entre outros, e no entanto...
Ela tem também afinidade com o movimento neo-realista mas os neo-realistas são todos homens. Escrevem romances épicos, maioritariamente sobre heróis masculinos, sejam eles pescadores, camponeses, meninos operários ou homens feitos que emigram para terras distantes. Ela tem a intuição de não fazer o mesmo: para escrever um romance épico sobre as mulheres, talvez fosse preciso primeiro provar que elas mereciam o épico.
Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro, Susana Moreira Marques, Companhia das Letras, Abril de 2023
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