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A Opinião de Paula Mota


Eu canto e a montanha dança

2024-05-29

E agora dirá algumas coisas. As que se podem dizer de enfiada, como uma corda. (…) As que têm de se arrancar como se fossem cebolas. (…) As que queimam. As que têm de se dizer a olhar para as árvores, e as que têm de se dizer a olhar para as ervas e as que têm de se dizer a olhar para as nossas próprias mãos.

“Eu canto e a montanha dança” é um livro original e lírico, uma ode prodigiosa aos Pirenéus catalães, à simbiose que existe entre as suas gentes, os seus fantasmas e a sua fauna e flora.

Eu vejo tudo; os caminhos e as árvores, o céu e o Sol, as manhãs e as noites e as pedras e as urtigas e a bosta das vacas e os cumes, e as rochas, e o fumo ao longe, e os sendeiros de javali… tudo a rimar. Trago a poesia no sangue. E conservo todos os poemas dentro da memória, como numa cómoda arrumada.

Nesta obra, a catalã Irene Solà escolhe a cadeia montanhosa que separa a Espanha da França não só como cenário mas também como protagonista, incluindo até um capítulo extremamente criativo da sua formação geológica…

O terrível despertar.

… sendo os seus habitantes os intervenientes que com ela contracenam numa vida dura ditada pela geografia acidentada e pelo isolamento dos povoados, sem esquecer os seus costumes, as suas lendas e até o seu papel na fuga dos republicanos após a derrota na Guerra Civil.

Os camponeses sempre encontraram armamento e coisas que os soldados que batiam em retirada deixaram para trás. E sabes o que é que fazem os camponeses, que são os sábios destas terras? Sabes o que é que é que fazia o teu avô e o que é que fazia eu próprio quando encontrávamos uma coisa destas? Olhar para o outro lado.

Nas montanhas, seguimos perspectivas tão inusitadas como a das nuvens, a dos cogumelos ou a dos corços, que contribuem para a atmosfera mágica e para o desenrolar da narrativa que segue várias personagens, ainda que se centre sobretudo na família que vive na casa de Matavaques, massacrada em diferentes momentos pelo infortúnio…

Embora às vezes uma mulher queira deixar de viver. Quando o nosso marido é atravessado por um raio como se fosse um coelho. Quando uma mulher fica com o coração esburacado por um ramo, mas não morre. Uma mulher quer deixar de viver. Mas então obrigam-na a viver. As crianças gritam e obrigam-na a viver. O velho tem fome e reclama. As pessoas da aldeia levam-lhe feijão e curgetes para a obrigar a viver. E ela deixa de ser mulher e converte-se em viúva, em mãe. Deixa de ser o centro da sua vida, deixa de ser a seiva e o sangue, porque a obrigam a renunciar a tudo o que queria.

…mas também nos seus vizinhos, uns reais, que não resistem ao apelo do regresso às montanhas ou nelas se refugiam, outros mais incorpóreos, como as mulheres de água, um grupo de mulheres  enforcadas por suspeitas de bruxaria.

E quando a Eulália lhes disse que a Joana era a mestra que trazia os fantasmas e preparava os unguentos com que nos besuntávamos, e a mestra que fazia os venenos de todo o país, e a que invocava o bode da Biterna e urdia todas as outras maldades que as bruxas fazem, e nós a três éramos as suas discípulas, a Joana não mexeu uma única palha.

“Eu canto e a montanha dança” é uma composição polifónica e luxuriante sobre uma natureza ora agreste ora delicada, a das montanhas e também a daqueles que a habitam.

A maior parte dos homens são mentirosos. Os homens que inventam histórias e os que as contam. Os que nos recortam, e nos comprimem e nos enfiam dentro das palavras, para que sejamos como a história que querem contar, com a moralidade que querem contar. Recortadas e empequenecidas e metidas nas suas cabecinhas. Não é por serem mais idiotas e diminutas que são menos cruéis.

Eu canto e a montanha dança, de Irene Solà, Cavalo de Ferro, Abril de 2024, Tradução de Rita Custódio e Alèx Tarradellas.

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