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A Opinião de Paula Mota


Eu Matei um Cão na Roménia

2024-06-06

Todos os animais falam – disse eu. O que é que estás a dizer? – riu-se Ovidiu. Claro que falam, outra coisa é nós não os conseguirmos entender – disse eu. Tu de certeza que os entendes, porque és professora de línguas e vens do continente dos papagaios que falam – disse ele.

Para a leitora que se insurge sempre com episódios de crueldade contra os animais, este livro poderia parecer um contrassenso só pelo seu título, mas garanto que nenhum animal foi maltratado no decurso desta história passada na Roménia, com a excepção daquela que também é a nossa realidade: animais praticamente ao abandono nas zonas rurais e vítimas de atropelamento em estradas.

Foi sobretudo a curiosidade e o espanto que me trouxeram a esta obra que marca o regresso da editora Europa-América depois da declaração de insolvência em 2019. Quem cresceu nos anos 80 e 90, como eu, teve acesso a muitos clássicos a preço acessível graças a livros de bolso em edições baratuchas, de papel manhoso e traduções discutíveis, mas o novo proprietário desta chancela deu-lhe uma volta de 180 graus, a avaliar pela estreia, “Eu Matei um Cão na Roménia”, da peruana Claudia Olloa Donoso, uma edição floppy de bom papel e vertida para português por dois tradutores respeitados, Cristina Rodriguez e Artur Guerra. “Eu Matei um Cão na Roménia” divide-se em quatro capítulos (cão morto, matilha, latidos e matacães) e é, em grande parte, uma road trip pela Roménia levada a cabo por dois amigos, uma professora de línguas latino-americana e um motorista de autocarros romeno, ambos imigrantes na Noruega.

Como não hei de eu falar de forma estranha se tenho uma confusão mental na cabeça com as línguas, há anos e anos que penso em espanhol, trabalho em norueguês e a única coisa que faço em romeno é sonhar.

Mihai precisa de resolver uns assuntos na tua terra natal, pelo que convida a professora, de baixa médica por depressão, para o acompanhar, na tentativa ingénua de que mudar de ares a fará largar os antidepressivos, mas não é esse o intento dela…

Tive a sensação de que me estava a preparar para morrer e fiquei envolvida por uma certeza. Uma espécie de satisfação estranha, quase festiva, mas simultaneamente cinzenta e silenciosa, sem serpentinas nem excitações, como a tranquilidade que chega ao ter concluído algo próprio e conhecido, algo entediante como um trabalho de anos, um ritual de passagem, a cessação do labor, pôr um ponto final, um apagar a luz e fechar.

…e uma vez na Roménia, desaparece a cumplicidade entre eles e Mihai passa a ser Ovidiu, um emigrante arreigado nos costumes do seu país de origem, um homem tacanho. Inesperadamente, rodeada de falantes de uma língua que não compreende, é a mítica bondade de estranhos que vale à professora, que comunica com eles através do espanhol e do italiano que estes aprenderam a trabalhar no estrangeiro, pelo tradutor do telemóvel ou, quando tudo mais falha, por simples gestos e sorrisos. Nesta obra sobre a dificuldade de comunicação inerente ao isolamento da depressão e às diferenças linguísticas, levantam-se valores nobres como o respeito pelas outras culturas, a simbiose com os animais…

E vem-me então com o porque é que não a deixo levar um cão romeno, e diz-me que leu uma notícia sobre vários turistas que vieram à Roménia para levar cães, e que a ela não lhe parece mal (…) e vem-me com esta de que o cão a tranquiliza, que lhe faz bem, que é como usar um saco de água quente.

…e a sororidade.

A minha língua leu o relevo da imagem sagrada enquanto imaginava que beijava todas as mulheres, as da Roménia e todas as outras, todas aquelas que a minha memória tinha registado ao longo da minha vida, todas aquelas mulheres com nomes e imagens. Eu nunca tinha beijado uma mulher, mas quando pus os lábios em cima do ícone, beijei todas as mulheres: Eva, Salomé, Miriam, Abigail, Marta, Débora, Madalena.

E quando a protagonista se retrai para um silêncio definitivo, a narração passa a capítulos alternados entre a verborreia obscena de Ovidiu e os monólogos internos cada vez mais líricos da professora.

O silêncio dessa tarde era uma membrana, o verniz selante de um quadro de museu, um grupo de bichos paralisados para a eternidade numa resina transparente, a mica de plástico que protege as fotografias de um álbum de fotos cheio de mortos.

Eu Matei um Cão na Roménia, de Claudia Ulloa Donoso, Europa-América, novembro de 2023, Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra

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