A Opinião de Paula Mota
Baumgartner
2024-06-17Viver é sentir dor, disse para consigo, e viver com medo da dor é recusar viver.
Tudo começa com uma simples caçarola esquecida ao lume, o ponto de viragem nos últimos nove anos que Baumgartner viveu no estado de torpor que se seguiu à morte inesperada da sua mulher, Anna, poeta e tradutora de francês, espanhol e até português.
Dou graças a Deus por todas aquelas belas sonatas matinais quando era acordado pelo som dos dedos de Anna a martelar as teclas, ou seja, pelo som da mente de Anna a cantar através dos dedos enquanto martelava as teclas, e depois de um mês a viver sozinho na casa vazia tinha acabado de sentir tanto a falta daqueles sons que de vez em quando entrava na sala dela, sentava-se diante da máquina silenciosa e dactilografava alguma coisa – qualquer coisa – só para voltar a ouvi-los.
A dor é tão intensa e paralisante que a compara a uma amputação.
Agora é um coto humano, um meio-homem que perdeu a metade de si que o fizera completo, e sim, os membros em falta continuam no sítio, e ainda doem, doem tanto que por vezes sente que o seu corpo está prestes a pegar fogo e consumi-lo imediatamente.
Os dois primeiros capítulos caracterizam-se por um olhar restrospectivo imbuído numa enorme apatia e nostalgia, em que vemos como o protagonista ainda não foi capaz de superar a perda da mulher. Baumgartner está preso ao amor da sua vida, indeciso entre a eliminação de todos os vestígios de Anna e a cristalização da vida em comum.
Até então, não tinha compreendido quão dividido tem estado relativamente a tudo quanto diz respeito a Anna, como desde o princípio a tem repelido e ao mesmo tempo se tem mantido preso a ela expurgando a casa de todos os resquícios dela e no entanto mantendo a sua sala de trabalho intacta.
Depois de um sonho revelador, há uma mudança de engrenagem no terceiro capítulo, com um olhar que agora se torna prospectivo, com a presença de um novo amor e a ideia para um novo livro, “Os Mistérios do Volante”.
E é assim que Baumgartner redescobre os prazeres estimulantes, propriocetivos, do movimento, o simples ato de pôr um pé à frente do outro e propulsar-se através do espaço, a totalidade do seu corpo alinhada pelos ritmos paralelos da batida do coração, da expansão e contração dos pulmões, do movimento firme das pernas, esquerdo-direito-esquerdo-direito e quando começa a agir naturalmente nos dias que se seguem, sente uma confiança cada vez maior em si mesmo para continuar a atravessar o vasto prado interior que se estende à sua frente.
Em chegando aos últimos capítulos, ambos os olhares confluem. Baumgartner dá um pulo ao passado recordando a história de vida dos pais mas projecta-se para o futuro com a chegada de uma estudante que pretende fazer uma tese sobre a obra de Anna, culminando num final à la Paul Auster, obviamente.
Desde que li “O Livro das Ilusões”, o meu preferido do autor, que procuro outro que me cause uma sensação parecida, e “Baumgartner”, de facto, esteve lá quase. Atrevo-me a dizer que Paul Auster partiu em grande estilo.
Quando chegar o fim que ao menos lhe seja concedida a dignidade de o seu coração parar em pleno esforço de produzir uma última frase da sua lavra, de preferência as palavras finais de um sonoro vão-se foder dirigido aos loucos famintos de poder que governam o mundo.
Baumgartner, de Paul Auster, ASA, Outubro de 2023, Tradução de Francisco Agarez
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