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A Opinião de Paula Mota


Advento

2024-10-14

Os seus sonhos estavam profundamente enterrados, escondidos, sob a passagem do tempo. Aqueles sonhos. Só Deus e ele próprio os conheciam. E as montanhas, às quais os confessava, em gritos, no seu desespero. Mas deixara-os para trás logo na primeira viagem.

Não sei exactamente o que define um clássico, mas creio que se o seu cariz universal e intemporal contribui para esse epiteto, “Advento” tem todo o direito de ser classificado como um clássico moderno. Ainda que seja indubitavelmente produto do seu tempo (1936) e do seu país (Islândia), o seu carácter alegórico e religioso faz dele não só um bonito conto de Natal, mas também uma história com várias dimensões.

Há 27 anos que, no primeiro domingo do Advento, Benedikt se faz à montanha em busca das ovelhas que ficaram perdidas por lá nas recolhas prévias de Outono…

Sentia uma certa responsabilidade por elas. Afinal, também eram seres vivos.

… somente na companhia dos seus leais companheiros Leão e Nodoso, um cão e um carneiro.

Tinham passado a conhecer-se, pouco a pouco, com aquele conhecimento profundo que talvez só seja possível entre espécies de animais muito diferentes, em que nenhuma sombra do seu próprio eu, do seu próprio sangue, dos seus próprios desejos ou vontades o possa confundir ou de certo modo obscurecer.

Se é claramente bíblica a referência ao pastor e às ovelhas tresmalhadas, não o é menos a ideia de santa trindade formada por este grupo. Benedikt é um homem bom e íntegro que pertence a uma pequena comunidade que se pauta pela solidariedade e pela entreajuda e, durante a sua expedição, não recusando auxiliar quem precisa, acaba por se atrasar, ser apanhado por um nevão, vendo, por conseguinte, os mantimentos cada vez mais depauperados e a sua vida e a dos seus companheiros em risco devido às temperaturas negativas e à fome.

Há algo de sagrado e inviolável na relação do homem com os animais. Um belo dia, Benedikt teria de tomar uma decisão: uma bala para um, uma faca para o outro. Era o preço a pagar. A responsabilidade a assumir. Um homem tornava-se não só dono das suas vidas, mas também das suas mortes. De acordo com o seu melhor julgamento e com os ditames da sua consciência. A vida era assim mesmo. Só quem passava por isso sabia o quanto doía.

“Advento” pode ser lido de uma perspectiva religiosa ou filosófica, como uma saga em miniatura, como uma lição de vida e de amizade entre pessoas e entre humanos e animais, numa narrativa que é uma luta contra o tempo, seja ele meteorológico, devido às condições agrestes, seja ele cronológico, pois o desejo de Benedikt é regressar à aldeia a tempo de aí passar o Natal.

O Advento! Sim… Benedikt encheu a boca com a palavra.(…) É verdade que não sabia ao certo o que significava, mas era uma palavra que continha, em si, expectativa, antecipação, preparação, e isso ele entendia. Com o passar dos anos, aquela palavra passara a conter, para ele, toda a sua vida.

Advento, de Gunnar Gunnarsson, Cavalo de Ferro, Março 2024, tradução de João Reis

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