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A Opinião de Paula Mota


Pedra e Sombra

2024-11-08

Quando aqui cheguei, passeava de noite por entre as sepulturas, abraçava as lápides seculares e perguntava-lhes: “És a minha testemunha?” Os velhos mestres chamavam assim às lápides, porque todas elas estão ali a testemunhar a nossa existência.

É curioso que deteste autores que explicam demasiado e não nos deixam ler nas entrelinhas, mas em “Pedra e Sombra” tenha sentido falta das cenas que ficaram por escrever, pois se não há justiça divina e o <i>karma</i> nem sempre funciona, seria uma catarse ver realmente o que aconteceu aos vilões deste romance em vez de ter de usar a minha imaginação. Burhan Sönmez abre esta obra com uma perseguição aterradora, em que a polícia vai no encalço de uma jovem até um cemitério, onde só encontra o velho Avdo, escultor de lápides tumulares que lá vive, interação essa que termina terrivelmente mal para o idoso e o seu cão devido ao carácter vingativo do chefe, Cobra. Está-se na década de 80 em Istambul, numa época de grande perturbação política e social na Turquia, depois do golpe militar de 1980, mais precisamente em 1984, ano não só de protestos universitários fortemente reprimidos mas também aquele que marca o início da última fase do conflito com os separatistas curdos.

Com este frio, os prisioneiros apertam-se, agacham-se e dormem uns por cima dos outros como ovelhas no curral. Cheiram a pus e a urina. Quem se aproximasse na escuridão não os distinguiria de um rebanho de animais. No entanto, como um diamante que brota luzindo do carvão, no meio deste rebanho apareceu uma rapariga muito bonita. Os homens da unidade que há pouco se juntou a nós agarraram nela, levaram-na até ao rio e uma dezena deles violou-a. (Genocídio de Dersim, 1938)

Burhan Sönmez é um autor turco de ascendência curda que também foi detido em 1984, quando era estudante, e foi alvo de uma tentativa de assassinato pela polícia turca quando já era advogado de direitos humanos, situação que o levou a exilar-se no Reino Unido, sendo hoje o presidente do PEN International, organismo que defende a liberdade de expressão e a cooperação entre escritores do mundo inteiro.

Neste épico moderno, Sönmez revela uma escrita clássica, o que torna a leitura fluida, também bastante sensível, que me enlevou de imediato, mas consegue elevar “Pedra e Sombra” através de um formato narrativo desafiante que me manteve sempre na expectativa em relação aos saltos temporais. Se a trama protagonizada por Avdo se inicia em 1984 no cemitério de Merkez Efendi e termina em 2002 no mesmo exacto local, viaja por toda a Turquia e por outros locais do Mediterrâneo, podendo no mesmo capítulo o friso cronológico passar de 1940 para mil novecentos e cinco anos antes e acabar numa referência como “Hoje, de noite”.

A existência é provação, e os sufis sabiam-no: a cela, a cidade lá fora, a prisão são todas elas uma só coisa. O mundo é uno; o resto são apenas distâncias.

A pedra basilar desta obra é a identidade, seja ela pessoal, nacional, cultural ou religiosa. Avdo perdeu-se da mãe em criança, desconhece quem seja, mas devido à sua bela voz, que usa para ganhar a vida, chama a atenção de outro artista de rua que o encaminha para Josef Usta, o canteiro do cemitério que moldará o seu destino.

Isa sorriu e, fitando o rapazinho dos pés descalços, pronunciou a palavra “mãe”.

- Repete – volveu o miúdo, com a felicidade espelhada no rosto – Repete-a em todas as línguas: Anne, Dayê, Emo, Umm, Mayrig, Mama.

Isa pronunciou a palavra em turco, curdo, siríaco, árabe, arménio e grego.

Em 1965, depois de 26 anos de errância e de muitas provações, por razões do coração, Avdo decide instalar-se e exercer o seu mester no cemitério de Merkez Efendi.

Avdo compreendeu o motivo da serenidade que sentia invadi-lo. Tinha encontrado o sítio onde morreria. Percebeu que enquanto deambulara a vida inteira à procura do lugar onde viver, o que na realidade procurava era o lugar onde morrer.

É também por razões sentimentais que acaba por conhecer o seu único amigo, o Marinheiro Loiro, que chega ao cemitério para encomendar uma lápide para o pai que quisera ser ali enterrado para ficar junto à sua primeira noiva, uma jovem arménia que tivera de deixar ao partir para a Primeira Guerra Mundial. Como “Pedra e Sombra” tem um carácter cíclico, repetem-se também as histórias de amores desencontrados, havendo apenas uma com um desfecho feliz que, no entanto, me pareceu algo forçado. Quando conhecemos Avdo, ele tem em mãos a lápide de Isa, o Homem dos Sete Nomes, um homem sem memória, que encarna a ideia da unidade na diversidade.

Ao longo de 40 anos deambulou entre Jerusalém, o Cairo, Creta, Atenas, Roma e Istambul, e em cada lugar adoptou uma nova religião e um novo nome. Quando nesse dia o levaram para o cemitério, o caixão ia coberto com um lenço amarelado e um papel com sete nomes: Ali, Haydar, Isa – como Jesus, Moisés, Maomé, Jonas, Adão.

É ele que deixa a Avdo um diário escrito entre 1938 e 1966, dirigido a uma Miskal, que serve para ligar a narrativa interna à narrativa maior, num enquadramento que não me parece tão bem conseguido como o resto desta esplêndida obra.

 Também eu sou uma sombra, e só me apercebi disso com o avançar da idade. Feita de coração, aprisionada no vórtice da nostalgia e da dor. A Lua ilumina agora a pedra que tenho diante de mim. A minha sombra cai sobre a pedra. Isto é um sonho, a pedra não existe, eu não existo, só existe a sombra.

Pedra e Sombra, de Burhan Sönmez, Livros do Brasil, abril de 2024, tradução de J. Teixeira de Aguilar

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