A Opinião de Paula Mota

Os Rostos
2025-01-02Porque havia, pensava ela, algo em cada rosto que ofendia e desafiava o mundo da mesma forma que a caligrafia ilegível de um médico ofende a autoestima do farmacêutico. Permitiu que um pensamento sereno e triste lhe deslizasse por entre as folhas do livro.
Creio que a leitura de “Os Rostos” será mais enriquecedora para quem puder contextualizá-la através de “A Trilogia de Copenhaga”, as memórias de Tove Ditlevsen, mas mesmo não me apercebendo de todos os pontos de contacto entre as duas obras, consigo avaliar esta que agora terminei de forma autónoma sobretudo pela escrita excepcional, apesar de um ligeiro abuso de metáforas e comparações.
Todos os dias cheirava os livros como um cão fareja nas árvores e nas pedras os odores que o instigarão a levantar a perna e urinar. (…) Provava-os com minúcia, deixava-os deslizarem-lhe pela língua como uma conhecedora de vinhos experiente, arrancava-os do contexto e polvilhava-os com as suas conclusões e ideias desavergonhadas. Esguia e curvada com um ponto de interrogação, tirou um livro de uma das prateleiras mais baixas.
São, por exemplo, soberbas as inúmeras passagens sobre o tema que dá nome à obra e que, tal como as vozes que ouve, são sintomáticas da desagregação mental da protagonista.
Durante o dia, os rostos estavam sempre a alterar-se, como se ela os visse refletidos em águas agitadas. Olhos, nariz, boca, um triângulo tão simples que, no entanto, continha um número infinito de variações. Como era possível? Há muito que evitava sair de casa, porque a imensidão de rostos que povoavam as ruas a assustava. (…) O novo rosto não era nem demasiado grande nem demasiado pequeno, e conservava vestígios de uma vida que não era a do seu novo dono. No entanto, quando uma pessoa se lhe habituava, surgiam nele traços do rosto original, tal como um papel de parede antigo que se rasga e expõe fragmentos da camada escondida abaixo dele, ainda fresca e bem preservada e repleta de recordações dos anteriores ocupantes da casa.
Lise, uma celebrada autora de livros infantis, é uma narradora questionável cujo relato dos acontecimentos nunca é claro na sua proveniência, porque se trata de uma mulher em crise, ou melhor, numa convergência de crises identitárias…
Nunca quis outra coisa. Não quero saber do mundo para nada. Só quero escrever e ler, só quero ser eu própria.
…como escritora, como mãe, como mulher…
Gert encarava a sua fama como uma afronta pessoal. Afirmava que não podia ir para a cama com uma obra literária e traía-a com grande empenho, mantendo-a meticulosamente informada sobre as suas conquistas amorosas.
…e como ser racional.
- A realidade – disse ele – existe apenas na sua mente. A vida correr-lhe-ia muito melhor se metesse isso na cabeça de uma vez por todas. A realidade não tem existência objetiva.
- Então onde é que eu existo? – perguntou ela.
- No consciente de outras pessoas – disse ele com paciência.
Depois de uma tentativa de suicídio, Lise é internada numa instituição psiquiátrica onde assistimos aos seus surtos psicóticos. Tendo em conta que estamos num país nórdico, não há as habituais descrições de más condições e maus tratos, mas as imagens usadas por Tove Ditlevsen transmitem um desassossego que nem o lirismo consegue mitigar.
Tateavam com uma mão ao longo da parede, que se inclinava um pouco sobre o corredor, e sabiam que um dia, no seu cansaço amarelo de abandono, a dita parede cairia sobre elas e as esmagaria. (…) Depois, esqueciam-se daquilo que lhes atraíra a atenção e retomavam o seu trabalho árduo de separar as horas umas das outras, para que a noite não gotejasse sobre elas a meio da tarde.
Filtradas pela mente perturbada de Lise, há situações da vida familiar extremamente incomodativas que, no final, nos levam a duvidar do que lemos: seriam a realidade ou fruto de um transtorno?
Os Rostos, de Tove Ditlevsen, Dom Quixote, Julho de 2024, Tradução de João Reis
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