A Opinião de Paula Mota

Inyenzi ou as Baratas
2025-03-26Desejaria escrever esta página com as minhas lágrimas.
Nunca nenhuma africana negra recebeu o Prémio Nobel da Literatura, e creio que Scholastique Mukasonga o merece, como magnífica memorialista que é, como sobrevivente de um povo perseguido e massacrado durante décadas, até mesmo por justiça poética, como homenagem ao milhão de tútsis chacinados pelos seus concidadãos hútus durante 100 dias, em 1994.
Em parte, esta é a mesma história que já tinha lido em “The Barefoot Woman”, dedicado a Stefania, a sua mãe, mas a verdade é que o massacre do Ruanda é o alicerce de toda a produção literária de Mukasonga, porque está intrinsecamente ligado à sua vida e à sua psique, à sua culpa de sobrevivente.
Eu contava e voltava a contar. Dava um total de 37.
É em honra desses 37 membros da sua família, pais, irmãos, irmãs, cunhados, cunhadas, sobrinhos e sobrinhos-netos, que a autora erigiu este “túmulo de papel”, na falta de muitas campas individuais e identificadas, visto que milhares de corpos foram enterrados em valas comuns, enquanto outros ficaram à mercê dos elementos e dos animais selvagens ou foram atirados aos rios. Quem, na altura, viu as imagens dos rios tingidos de sangue com cadáveres estropiados a boiar nunca poderá esquecer.
Houve, é claro, sobreviventes. Nenhum genocídio é perfeito.
Mukasonga abre “Inyenzi ou as Baratas” com um pesadelo recorrente e inicia a narrativa dos acontecimentos de forma cronológica, em 1959, com os primeiros pogroms dirigidos aos tútsis, quando tinha apenas três anos de idade, altura em que a família teve de abandonar a sua aldeia com uma panela de ferro fundido como única bagagem, para se exilar em Nyamata, uma zona de savana quase desabitada, infestada de moscas tsé-tsé.
Em 1962, o Ruanda tornou-se uma nação independente depois de décadas a ser administrado por potências europeias, tornando-se um símbolo dos efeitos de um colonialismo salobro e de um pós-colonialismo irresponsável, em que a Igreja Católica desempenhou um papel pernicioso, instigando umas etnias contra as outras, e a ONU, mais uma vez, não deu uma resposta atempada nem eficiente.
Bertrand Russell estava completamente só quando denunciou “o massacre mais horrível e mais sistemático desde o extermínio dos judeus pelos nazis”. A hierarquia católica, a antiga autoridade mandatária e as instâncias internacionais não tiveram mais nada a dizer sobre o caso a não ser condenar o terrorismo dos Inyenzi.
O terrorismo dos oprimidos e acossados, um cenário demasiado familiar e actual. Foi no início dos anos 60, com a subida dos hutus ao poder que surgiu o termo “Inyenzi” (barata), uma forma de desumanizar aqueles que se quer exterminar, como Hitler fez aos judeus, como Putin faz aos ucranianos, para conseguirem o apoio da população em geral. Apesar da discriminação e do sistema de quotas no ensino, Mukasonga e alguns dos seus irmãos ainda conseguiram estudar. A temporada passada num colégio de freiras entre 1968 e 1971 comprova o espírito de resistente que sempre a caracterizou.
Nós, as tútsis, ficávamos despertas. Esperávamos que todas as nossas colegas dormissem profundamente, que já não houvesse ninguém a ir à casa de banho, que as freiras estivessem definitivamente recolhidas. (…) Muitas vezes, estudávamos ali as lições e fazíamos os trabalhos de casa até de madrugada. Tudo o que aprendi em Notre-Dame-de-Citeaux, aprendi nas casas de banho.
Foi em 1973, quando já estudava na escola de assistentes sociais, que o cerco se apertou em torno dos tútsis e os pais de Mukasonga decidiram pôr dois dos filhos mais velhos, os mais instruídos, a salvo no Burundi.
Tínhamos sido escolhidos para sobreviver.
Depois de se formar, trabalhou em vários programas da Unicef, casou-se com um francês, teve dois filhos e encontrava-se em França quando se deu o último acto da limpeza étnica, em 1994.
Da morte dos meus, tenho apenas buracos negros e fragmentos de horror. O que mais faz sofrer? Ignorar como foram mortos ou saber como os mataram?
É aqui que o relato desta guardiã da memória familiar fica realmente pungente, já que, aos poucos, ficou a saber como morreram ou escaparam todos os seus entes queridos, e que se torna quase sufocante na linha temporal de 2004, quando finalmente ganha coragem para regressar ao “país dos mortos”, para visitar as ossadas reunidas na cripta escavada por baixo da igreja de Nyamata e voltar à casa dos pais, totalmente em ruínas e invadida pelo mato, onde se cruza com antigos vizinhos, pois tal como noutros pontos do mundo, devido à política de reconciliação, carrascos e sobreviventes têm de continuar a coexistir.
Estou sozinha numa terra estrangeira onde já ninguém me espera. Fecho os olhos e às recordações sobrepõem-se as coisas desaparecidas.
Inyenzi ou as Baratas, de Scholastique Mukasonga, Livros do Brasil, Setembro de 2024, tradução de Maria de Fátima Carmo
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