A Opinião de Paula Mota

Orbital
2025-04-28O passado chega, o futuro, o passado, o futuro. É sempre agora, nunca é agora.
Este seria um livro que, em princípio não me puxaria, já que não tenho praticamente interesse pelo espaço. Não vi os clássicos baseados na obra de Arthur C. Clarke (“2001-Odisseia no Espaço”, “2010-Ano do Contacto”) nem sequer a mítica série televisiva de Carl Sagan, “Cosmos”. Fascina-me, no entanto, um céu estrelado longe das luzes artificiais das cidades e também a estranheza de viver fechado dentro de uma nave, de que tive um vislumbre na exposição “Cosmos Discovery” em 2017.
Numa missão de nove meses, há um total de aproximadamente quinhentas e quarenta horas de exercícios matinais. […] Quinhentas e quarenta vezes de ter de engolir pasta de dentes. Trinta e seis trocas de t-shirt, cento e trinta e cinco mudanças de roupa interior (roupa interior lavada todos os dias é um luxo a que não se podem dar), cinquenta e quatro pares de meias limpas.
Foi esse fascínio e essa curiosidade que satisfiz com “Orbital”, o improvável vencedor do Booker Prize de 2024 face aos grandes preferidos: “Os Meus Amigos” de Hisham Matar e “James” de Percival Everett.
No fundo, não é um livro sobre o espaço, mas uma belíssima e singular meditação sobre a periclitante vida no Planeta Azul mas vista de fora, na perspectiva privilegiada da Estação Espacial Internacional, ao longo de um único dia de órbita em torno do globo, em que esta “família flutuante”, constituída por quatro astronautas e dois cosmonautas, assistirá 16 vezes ao nascer e ao pôr-do-sol.
Olham para baixo e compreendem o porquê de lhe chamarem Terra-Mãe. Todos o sentem de vez em quando. Todos fazem uma associação entre a Terra e mãe, o que, por sua vez, os leva a sentir-se crianças. No balançar andrógino de rostos escanhoados, com os calções regulamentares, a comida de colher, o sumo bebido por palhinhas, as bandeirinhas de aniversário, as madrugadas, a inocência forçada de dias diligentes, todos têm, lá em cima, momentos de uma aniquilação repentina dos seus eus de astronautas e de uma sensação poderosa de infância e pequenez.
É neste contraste entre a insignificância dos humanos e a vastidão do universo que “Orbital” se torna um romance existencialista…
Há pessoas assim (gosta ele de dizer), que complicam as vidas interiores por sentirem demasiado ao mesmo tempo, por viverem em nós, e que por isso precisam que o que lhes é extrínseco seja simples. Uma casa, campo, algumas ovelhas, por exemplo. E há quem consiga de alguma maneira, por algum milagre de ser, simplificar a vida interior de forma que as coisas que lhe são extrínsecas possam ser ambiciosas e ilimitadas. Essas pessoas são capazes de trocar uma casa por uma nave espacial, um campo por um Universo.
…onde impera a contemplação das diferentes paisagens sobrevoadas, sem descurar a componente ambientalista…
Quem será capaz de olhar para o ataque neurótico do homem ao planeta e achá-lo bonito? A soberba do homem. Uma soberba tão poderosa que só a estupidez a pode emular. E aquelas naves fálicas lançadas para o espaço são seguramente as mais soberbas de todas, os tótemes de uma espécie que o amor-próprio ensandeceu.
Esta posição vantajosa, em que o planeta é visto como um todo, serve também para questionar as divisões que separam os povos, tanto na Terra…
Uma sensação de amizade e paz prevalece, uma vez que mesmo à noite só há uma fronteira feita pelo homem no mundo inteiro, um longo rasto de luzes entre o Paquistão e a Índia. É a única amostra que a civilização tem para lhes dar das suas divisões e, durante o dia, até isso desaparece.
…como quatrocentos quilómetros acima dela.
APENAS COSMONAUTAS RUSSOS, diz na porta da casa de banho russa. Da mesma forma, na porta da casa de banho norte-americana, APENAS ASTRONAUTAS AMERICANOS, EUROPEUS E JAPONESES. Devido às disputas políticas atuais, use a sua própria casa de banho nacional.
O facto de “Orbital” ter sido classificado como ficção científica pode afastar alguns leitores mas também desiludir outros, pois decorre nos dias de hoje, pouco mais de 50 anos depois da primeira alunagem, como se refere a dada altura, em que o momento mais futurista é a passagem de uma nova missão à lua e a referência a planos de chegar a Marte e povoar esse planeta caso destruamos a Terra de vez. O passado, porém, está também em destaque quando Samantha Harvey refere o momento histórico vivido pelo cosmonauta Sergei Krikalev em Dezembro de 1991, aquando do desmembramento da URSS, muito significativo para uma leitura mais profunda desta elegante composição.
O homem […] que, antes disso, foi enviado para o espaço pela URSS e esteve em órbita na Mir durante quase mais seis meses do que o planeado, porque, enquanto lá estava, a URSS deixou de existir e ele não podia voltar para casa.
Orbital, de Samantha Harvey, Particular Editora, Fevereiro de 2025, tradução de Nuno Carvalho
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