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Folheando com... João Ricardo Pedro


João Ricardo Pedro

2012-04-27

Teve a pouca sorte de cair no desemprego, mas foi graças a essa pouca sorte que se pôs a escrever, acabando por ganhar o Prémio Leya 2011. Falamos do autor João Ricardo Pedro, a quem vamos entrevistar.


Se preferir ouvir a entrevista, clique aqui.

Há quem diga que é difícil e injusto avaliar um autor por um livro. O júri, porém, não teve dúvidas, o que por certo expressa a qualidade do romance. João Ricardo Pedro, podemos deduzir que a engenharia electrotécnica ficou para trás e que a literatura passa a ser a sua nova ocupação?

É difícil de fazer esse tipo de previsões, dizer que a literatura passa a ser a minha nova ocupação. A engenharia ter ficado para trás, foi uma decisão tomada mesmo antes de ganhar o prémio. A partir do momento em que comecei a escrever, ainda sem saber o que ia acontecer, sem pensar sequer no prémio Leya, o facto de estar a escrever e o prazer que isso me dava, deu para dizer a mim próprio: “a minha vida tem que passar por aqui”. Logo nessa altura a engenharia ficou para trás. Agora quanto ao futuro não sei.

A história do romance começa com o 25 de Abril e tem, entre outros protagonistas, vários membros de uma família: o médico Augusto Duarte; o furriel António Mendes, filho; o pianista Duarte, neto, que na obra encarna a figura do «maior beethoveniano do seu tempo». Pergunto-lhe: conheceu alguém que o tenha inspirado na criação destas personagens?

Como é que foi o processo de construção desta gente?

Não há ninguém na minha vida que eu conhecesse que se possa assemelhar às personagens. As personagens são o somatório de todas as pessoas que conhecemos. Eu consigo encontrar na minha memória coisas que se relacionem com o que ficou do livro. Mas como é que esses mecanismos se processam? Como é que de repente se inventa um personagem? Como é que de repente eu decido que ele é médico? Como é que o neto passa a ser pianista? São coisas que acontecem no instante em que se está a escrever e não consigo ter a noção

de como é que isso se processa. Como o romance não foi pensado previamente, como a própria história foi acontecendo à medida que eu fui escrevendo, eu ia-me surpreendendo a mim próprio. E as coisas apareciam inesperadamente. Por isso é difícil de perceber. Eu não consigo que toda a ficção, ou pelo menos a ficção que eu pratiquei neste livro, fosse alimentada das memórias que eu tinha.

Saber com clareza, não sei.

Mas já sabia qual era o fim?

Nada, nada.

Foi mesmo passo a passo?

Foi mesmo passo a passo.

Ao ler o livro deparamos com variadíssimos acontecimentos trágicos: um cão esfolado como um coelho, um índio assassinado, uma pintora que se mutila, e por aí adiante. Porque escolheu o título O Teu Rosto Será o Último?

Eu tinha uma série de títulos provisórios (fui tendo ao longo do livro), e esse foi daqueles que apareceu meio ensonado, meio em sonhos. Eu estava já nas últimas semanas... Bem, que título vou dar ao livro?, perguntava a mim mesmo. E aquilo foi meio em sonhos, apareceu-me esta frase... O que é que esta frase tem a ver com o livro? Não é muito claro, eu sei. O certo é que decidi, e foi mesmo assim que se chamou.

Houve alguma razão especial para ter criado um pianista que tocava as 32 sonatas de Beethoven?

Isso também foi inesperado porque a partir do momento em que o Duarte passa a ser pianista, e foi também uma coisa que apareceu no processo de escrita. Até esse momento eu escrevi sempre em silêncio e partir de certa altura passei só a conseguir escrever ouvindo música para piano. Tinha muito Bach em casa e um dia vou a uma loja e vejo as 32 sonatas de Beethoven tocadas pelo Brendel. Compro aquilo, a partir dessa altura passei a escrever o livro e a ouvir Beethoven... Aquilo começa a fazer parte de tal maneira da minha vida que acabou por entrar no romance também.

Vou citar uma pequena parte da carta de Policarpo: «Oh, amigo Augusto, deixa-me dizer-te que também eu me revi nesse homem que se olhava ao espelho, sem, no entanto, alguma vez o ter visto. E, fazendo agora um pouco de paródia, que atire a primeira pedra aquele que não tem um olho de vidro». Não lhe vou perguntar se também tem um, João Ricardo Pedro, mas posso perguntar-lhe – pelo fio condutor da sua história –, como foi encarando ao longo do tempo em que esteve a escrever este romance, o olho de vidro da ditadura.

O olho de vidro acaba por ser, na história das pessoas e na história dos países, aquilo... O olho de vidro parte de uma falha. O homem não tem um olho e é a prótese que vai substituir aquilo. Parte portanto de uma falha. Parte de uma coisa que resultou mal na vida dele. E o olho de vidro acaba por ser o mal menor que acaba por substituir o olho verdadeiro. Acaba por ser aquilo que consegue minimizar o passado que toda a gente desconhece, mas acaba por ser também uma marca que o vai tornar reconhecível até ao resto da vida. Eu acho que quase todas as pessoas na vida têm isso. Têm o seu olho de vidro. E a história dos países também é feita dessas coisas. A ditadura deixou marcas profundas no nosso país e se calhar aqueles quarenta e tal anos também são uma espécie de olho de vidro que vai ficar para sempre encostado na nossa história.

Deu a ler o original a várias pessoas antes de o enviar para a Editora?

Não, nunca. Escrevi sempre absolutamente sozinho e quando o entreguei a concurso, as pessoas da Leya – as pessoas que fizeram a pré-selecção –, foram as primeiras a ler o romance.

Transcorridas que estão algumas semanas depois de ter conquistado o prémio, é lícito imaginar que tenha conhecido outros escritores e leitores que tenham lido o livro. Quer partilhar com o Portal da Literatura as impressões que tem colhido, ou algum comentário ou imagem que o tenha sensibilizado?

Até agora as reacções têm sido muito boas. Mas eu acho também que quem não gosta não diz nada. É engraçado ouvir a opinião das pessoas. Dizem que gostam do livro mas geralmente há uma que gosta mais de uma parte, outra que gosta mais de outra, e isso é engraçado, expressa a sensibilidade de cada um. Como o livro é estruturado em episódios muito diferentes, como as pessoas acabam por ganhar afeição a coisas totalmente diferentes, se calhar porque vêm ali uma certa ressonância da sua própria vida, do seu imaginário. Tem sido engraçado. As pessoas têm sido muito simpáticas comigo. De facto houve um comentário curioso de uma pessoa que disse – como o livro tem uma série de tragédias, de acontecimentos trágicos –, que o facto do protagonista ser sportinguista não augurava nada de bom.

Há sempre curiosidade em saber quais são as obras que mais influenciaram um autor. Quer revelá-las? E neste momento, o que está a ler?

É sempre complicado mas houve momentos chave no meu crescimento. O Kafka, que foi o primeiro autor que li. O Hemingway que foi o primeiro escritor que me deu vontade e que me levou a pensar em ser escritor. E depois se calhar o Proust, que foi aquele que me fez pensar que realmente a dedicação à literatura pode ser uma coisa levada a um extremo, pode ser uma coisa tão absorvente que se esquece de tudo o resto. E em Portugal há dois nomes fundamentais para mim também, que são o José Cardoso Pires e o António Lobo Antunes. Talvez por serem portugueses e trabalharem a língua que eu conheço... Influenciaram-me muito.

E neste momento, o que é que está a ler?

Neste momento estou a ler o Leite Derramado do Chico Buarque. Estava já para aí há uns dois ou três anos em casa e estou a aproveitar.

Por esta altura já deve estar a escrever outro romance! Quer levantar um pouco o véu?

Estou a escrever. Já retomei o hábito da escrita, deve ser um romance mas ainda não consigo perceber o que é que vai sair dali.

João Ricardo Pedro, muito obrigado pela entrevista.

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