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O Último Voo do Flamingo

Mia Couto

2000 Editorial Caminho

Sinopse

Tizangara, primeiros anos do pós-guerra. Nesta vila tudo parecia correr bem. Os capacetes azuis já haviam chegado para vigiarem o processo de paz, e o dia a dia da população corria numa aparente normalidade. Mas por razões que quase todos desconheciam, esses mesmos capacetes azuis começaram, de súbito, a explodir. Massimo Risi, o soldado italiano das Nações Unidas destacado para investigar estas estranhas explosões, chega a Tizangara. Colocam-lhe um tradutor à disposição, e é através do relato deste que tomamos conhecimento dos factos. Entramos num mundo de vivos e de mortos, de realidade e de fantasia, de feitiços e de sobrenatural. A verdade e a ficção passam por nós em personagens densamente construídas, de que o feiticeiro Andorinho, a prostituta Ana Deusqueira, o padre Muhando, o administrador Estêvão Jonas e a sua mulher Ermelinda, a velha-moça Temporina, o velho Sulplício, são apenas alguns exemplos... O mistério adensa-se. Os soldados da paz morreram ou foram mortos?

Extras

Excerto

A nossa gente não vive sem tratar os do lado de lá, passados a poente fino.
Habitamos assim: a vida a oriente, a morte a ocidente. A morte, a morte mais sua
inexplicável utilidade! Minha mãe partira na curva da chuva, saindo a habitar a estrela
de nenhumas pontas. A partir de então, a vida já não lhe comparecia: ela apanhara o
último desencontrão. Ainda lembrei suas palavras amadurecendo uma esperança para
mim quando eu de tudo descria:
- Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim:
está sempre toda por viver.
E agora, por não-consequência, eu partia para encontrar meu pai. Onde ele
pairava? Se mantinha ali nos arredores do nosso distrito, incapaz do longe, inapto para o
perto? Alugaria ainda seu velho barco aos pescadores da foz do rio? Eu esperava que
sim, causa do afeto que ganhara pelo barquinho, as vezes que permanecera sob cuidados
paternos. Fora eu que nomeara o bote: o barco-íris. E lá me encimava na proa,
ondarilhando por aquelas águas. Quando construíram a barragem, o rio ficou mais
ensinado e o estuário se adocicou, oferecido a navegações todo o ano.
De todas as vezes que fui visitar meu pai eu me entreguei à vida do povo dali.
Ajudei na faina, puxei rede, espetei polvo, amarrei embarcação. Meu pai me recebia
satisfeito na praia. Nunca quis saber sobre meus cansaços. Ele tinha ideia muito dele
sobre o trabalho. Para ele, o barco é que fazia andar o remo. Em toda sua vida, ele só
andara pelos interiores. Era um sabedor de matos, ignorante de oceano.
Nesse tempo, eu ainda tinha o corpo todo vivo, estava ali para as crenças e
nascenças. De noite, ante a crepintação da fogueira, o velho Sulplício me pedia para
relatar minhas aventuras na barqueação. E sorria, defendendo suas incapacidades em
assuntos marinhos:
- O camarão anda na água e não sabe nadar.
Depois dos conflitos que tivera com a administração, meu velho não guardava
boa ideia do trabalho. Antes, ele acreditara no poder de o trabalho criar futuro. Perdera
essa crença. Em ano recente, até decidiu envergar pijama para toda a vida. Apenas de
noite, quando o pijama devia cumprir seus congênitos serviços, ele se libertava do
vestuário. Despia-se para dormir.
- Meu pai, de pijama durante o dia?
É que se dava o caso de ele dormitar aqui e acolá, encostado mesmo à mais
brava claridade. Assim, com tal indumentária, ele estava bem adequado a esses
cabeceios. Mas não era apenas o caso do pijama: o velho se aumentava de manias que
contrariavam a gente universal. Como, noutro exemplo: só no domingo ele calçava. Nos
restantes dias, os da semana, seus pés terreavam, satisfeitos por acariciarem o infinito do
chão. Fim do dia, derramava um chá morno sobre as pernas. Os pés nus numa bacia se
encharcavam, em banho de repouso.
- Estou a dar-lhes de beber - e se ria.
Minha velhota muito se irritava com aquele desacostumado uso. A esquisitice,
porém, tinha uma razão: ele andava descalço para não gastar seu único par de sapatos.
Trazia-os pendurados pelas mãos, mas sem nunca os envergar enquanto marchasse.
Calçava-os apenas depois, quando já estava parado em pose de senhor.
Aqueles momentos junto ao meu velhote me puxavam para um incerto sono,
quem sabe isso que chamam de ternura fosse aquele amaciamento. Esses breves tempos
foram, hoje eu sei, a minha única casa. No estuário onde meu velho deitara seu existir
eu inventava minha nascente.

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