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Poema e Poesia de Fernando Pessoa

Vida
Fernando Pessoa

Mensagem - O Encoberto

O ENCOBERTO 

Pax In Excelsis 

I. Os Símbolos 

Primeiro / D. Sebastião 

’Sperai! Caí no areal e na hora adversa 
Que Deus concede aos seus 
Para o intervalo em que esteja a alma imersa 
Em sonhos que são Deus. 

Que importa o areal e a morte e a desventura 
Se com Deus me guardei? 
É O que eu me sonhei que eterno dura, 
É Esse que regressarei. 

Segundo / O Quinto Império 

Triste de quem vive em casa, 
Contente com o seu lar, 
Sem que um sonho, no erguer de asa, 
Faça até mais rubra a brasa 
Da lareira a abandonar! 

Triste de quem é feliz! 
Vive porque a vida dura. 
Nada na alma lhe diz 
Mais que a lição da raiz — 
Ter por vida a sepultura. 

Eras sobre eras se somem 
No tempo que em eras vem. 
Ser descontente é ser homem. 
Que as forças cegas se domem 
Pela visão que a alma tem! 

E assim, passados os quatro 
Tempos do ser que sonhou, 
A terra será teatro 
Do dia claro, que no atro 
Da erma noite começou. 

Grécia, Roma, Cristandade, 
Europa — os quatro se vão 
Para onde vai toda idade. 
Quem vem viver a verdade 
Que morreu D. Sebastião? 

Terceiro / O Desejado 

Onde quer que, entre sombras e dizeres, 
Jazas, remoto, sente-te sonhado, 
E ergue-te do fundo de não-seres 
Para teu novo fado! 

Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo, 
Mas já no auge da suprema prova, 
A alma penitente do teu povo 
À Eucaristia Nova. 

Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido, 
Excalibur do Fim, em jeito tal 
Que sua Luz ao mundo dividido 
Revele o Santo Graal! 

Quarto / As Ilhas Afortunadas 

Que voz vem no som das ondas 
Que não é a voz do mar? 
É a voz de alguém que nos fala, 
Mas que, se escutarmos, cala, 
Por ter havido escutar. 

E só se, meio dormindo, 
Sem saber de ouvir ouvimos 
Que ela nos diz a esperança 
A que, como uma criança 
Dormente, a dormir sorrimos. 

São ilhas afortunadas 
São terras sem ter lugar, 
Onde o Rei mora esperando. 
Mas, se vamos despertando 
Cala a voz, e há só o mar. 

Quinto / O Encoberto 

Que símbolo fecundo 
Vem na aurora ansiosa? 
Na Cruz morta do Mundo 
A Vida, que é a Rosa. 

Que símbolo divino 
Traz o dia já visto? 
Na Cruz, que é o Destino, 
A Rosa, que é o Cristo. 

Que símbolo final 
Mostra o sol já desperto? 
Na Cruz morta e fatal 
A Rosa do Encoberto. 

II. Os Avisos 

Primeiro / O Bandarra 

Sonhava, anónimo e disperso, 
O Império por Deus mesmo visto, 
Confuso como o Universo 
E plebeu como Jesus Cristo. 

Não foi nem santo nem herói, 
Mas Deus sagrou com Seu sinal 
Este, cujo coração foi 
Não português mas Portugal. 

Segundo / António Vieira 

O céu ’strela o azul e tem grandeza. 
Este, que teve a fama e à glória tem, 
Imperador da língua portuguesa, 
Foi-nos um céu também. 

No imenso espaço seu de meditar, 
Constelado de forma e de visão, 
Surge, prenúncio claro do luar, 
El-Rei D. Sebastião. 

Mas não, não é luar: é luz do etéreo. 
É um dia; e, no céu amplo de desejo, 
A madrugada irreal do Quinto Império 
Doira as margens do Tejo. 
’Screvo meu livro à beira-mágoa. 

Terceiro 

’Screvo meu livro à beira-mágoa. 
Meu coração não tem que ter. 
Tenho meus olhos quentes de água. 
Só tu, Senhor, me dás viver. 

Só te sentir e te pensar 
Meus dias vácuos enche e doura. 
Mas quando quererás voltar? 
Quando é o Rei? Quando é a Hora? 

Quando virás a ser o Cristo 
De a quem morreu o falso Deus, 
E a despertar do mal que existo 
A Nova Terra e os Novos Céus? 

Quando virás, ó Encoberto, 
Sonho das eras português, 
Tornar-me mais que o sopro incerto 
De um grande anseio que Deus fez? 

Ah, quando quererás, voltando, 
Fazer minha esperança amor? 
Da névoa e da saudade quando? 
Quando, meu Sonho e meu Senhor? 

III. Os Tempos 

Primeiro / Noite 

A nau de um deles tinha-se perdido 
No mar indefinido. 
O segundo pediu licença ao Rei 
De, na fé e na lei 
Da descoberta, ir em procura 
Do irmão no mar sem fim e a névoa escura. 

Tempo foi. Nem primeiro nem segundo 
Volveu do fim profundo 
Do mar ignoto à pátria por quem dera 
O enigma que fizera. 
Então o terceiro a El-Rei rogou 
Licença de os buscar, e El-Rei negou. 

Como a um cativo, o ouvem a passar 
Os servos do solar. 
E, quando o vêem, vêem a figura 
Da febre e da amargura, 
Com fixos olhos rasos de ânsia 
Fitando a proibida azul distância. 

Senhor, os dois irmãos do nosso Nome — 
O Poder e o Renome — 

Ambos se foram pelo mar da idade 
À tua eternidade; 
E com eles de nós se foi 
O que faz a alma poder ser de herói. 
Queremos ir buscá-los, desta vil 
Nossa prisão servil: 
É a busca de quem somos, na distância 
De nós; e, em febre de ânsia, 
A Deus as mãos alçamos. 
Mas Deus não dá licença que partamos. 

Segundo / Tormenta 

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue? 
Nós, Portugal, o poder ser. 
Que inquietação do fundo nos soergue? 
O desejar poder querer. 

Isto, e o mistério de que a noite é o fausto... 
Mas súbito, onde o vento ruge, 
O relâmpago, farol de Deus, um hausto 
Brilha e o mar ’scuro ’struge. 

Terceiro / Calma 

Que costa é que as ondas contam 
E se não pode encontrar 
Por mais naus que haja no mar? 
O que é que as ondas encontram 
E nunca se vê surgindo? 
Este som de o mar praiar 
Onde é que está existindo? 

Ilha próxima e remota, 
Que nos ouvidos persiste, 
Para a vista não existe. 
Que nau, que armada, que frota 
Pode encontrar o caminho 
À praia onde o mar insiste, 
Se à vista o mar é sozinho? 

Haverá rasgões no espaço 
Que dêem para outro lado, 
E que, um deles encontrado, 
Aqui, onde há só sargaço, 
Surja uma ilha velada, 
O país afortunado 
Que guarda o Rei desterrado 
Em sua vida encantada? 

Quarto / Antemanhã 

O mostrengo que está no fim do mar 
Veio das trevas a procurar 
A madrugada do novo dia, 
Do novo dia sem acabar; 
E disse: “Quem é que dorme a lembrar 
Que desvendou o Segundo Mundo, 
Nem o Terceiro quer desvendar?” 

E o som na treva de ele a rodar 
Faz mau o sono, triste o sonhar. 
Rodou e foi-se o mostrengo servo 
Que seu senhor veio aqui buscar. 
Que veio aqui seu senhor chamar — 
Chamar Aquele que está dormindo 
E foi outrora Senhor do Mar. 

Quinto / Nevoeiro 

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, 
Define com perfil e ser 
Este fulgor baço da terra 
Que é Portugal a entristecer — 
Brilho sem luz e sem arder, 
Como o que o fogo-fátuo encerra. 

Ninguém sabe que coisa quer. 
Ninguém conhece que alma tem, 
Nem o que é mal nem o que é bem. 
(Que ânsia distante perto chora?) 
Tudo é incerto e derradeiro. 
Tudo é disperso, nada é inteiro. 
Ó Portugal, hoje és nevoeiro... 

É a Hora! 

Valete, Fratres. 

Fernando Pessoa - O Encoberto - Terceira de Três Partes

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